O sistema fisiológico que regula a massa corporal envolve tanto sistemas centrais como periféricos. Estes sistemas interagem com fatores ambientais, tais como a disponibilidade para o exercício físico e a composição da dieta, o que influencia, consequentemente, a massa corporal. Embora a genética desempenhe um papel importante na determinação da massa corporal, o aumento da prevalência da obesidade nas últimas décadas tem sido relacionada com as mudanças no ambiente em que se vive. Analisando as variáveis ambientais que são provavelmente responsáveis pela “epidemia da obesidade”, a maior parte da atenção está focada no estado, custo e composição do alimento ingerido.
No entanto, é possível constatar que existem outras variáveis ambientais que, embora não sejam frequentemente mencionadas, são de vital importância no que respeita ao apetite e equilíbrio de energia. Neste sentido, o sono tem sido apontado como uma destas variáveis, em que a alteração no período do sono tem sido associada a um descontrolo da ingestão alimentar e, como consequência, à obesidade.
OBESIDADE E SONO: ASPECTOS EPIMIDOLÓGICOS
A redução do tempo de sono tornou-se um hábito comum na atualidade, imposta pelas exigências sócio-económicas modernas. Ao longo de 40 anos, a duração do sono diminuiu de 1,5 a 2 horas nos Estados Unidos. A percentagem de jovens adultos com um período de sono inferior a sete horas por noite aumentou de 15,6% em 1960 para 37,1% em 2001-2002.
Vários estudos epidemiológicos correlacionam a curta duração do tempo de sono com o aumento do índice da massa corporal (IMC) em diferentes populações.
Um estudo espanhol realizado em 2000, mostrou uma associação inversa entre obesidade e duração de sono, com um rácio para obesidade 24% menor para cada hora adicional de sono. Os autores descobriram que um tempo de sono igual ou inferior a 6 horas por dia aumentava o risco de obesidade. Mesmo controlando as variáveis de género, idade e outros fatores, o grupo que dormia 6 horas tinha um IMC maior do que o grupo que dormia 9 horas (27,7 kg/m2 – Grupo 6h/dia vs. 24,9 kg/m2 – Grupo 9h/dia).
Vários estudos apontam que uma duração de sono menor que 6 horas é associada a um IMC elevado e à obesidade. Baseado nesta hipótese, Hasler et al., realizaram um estudo com jovens adultos. A informação foi recolhida em 4 entrevistas quando os participantes tinham 27, 29, 34 e 40 anos, num total de 496 pessoas. Este estudo mostrou uma associação negativa entre a duração do sono e o IMC na população avaliada, tendo estas associações persistido após o controlo de variáveis como o histórico familiar, problemas de massa corporal, níveis de atividade física e variáveis demográficas. As associações entre duração do sono e obesidade diminuíram depois dos 34 anos. Houve uma tendência (P = 0,08) da taxa média de mudança de ganho de massa corporal ser negativamente associada com a taxa média de mudança na duração do sono.
CONTROLO DA INGESTÃO ALIMENTAR E O ENVOLVIMENTO DO SONO
A existência de uma relação entre sono e ingestão alimentar tem vindo a ser proposta pela literatura. Esta relação, é demonstrada em modelos animais, que se mostram hiperfágicos após a privação de sono. Em humanos, o trabalho por turnos e o jet lag, situações que normalmente alteram o padrão habitual de sono, estão claramente associados com as alterações no padrão da ingestão alimentar. Embora os mecanismos que explicam essas associações não estejam totalmente esclarecidas, sabe-se que os distúrbios provocados pelas alterações nos horários de sono influenciam o apetite, a saciedade e, por consequência, a ingestão alimentar, o que parece proporciona o aumento da obesidade. Acredita-se que isso se deva a um desajuste no relógio biológico, o que prejudica a duração e qualidade do sono e, consequentemente, modifica o controlo da ingestão alimentar.
Um estudo conduzido por Spiegel et al., evidenciou que a restrição de sono foi associada a um significante aumento da fome (24%; P < 0,01) e apetite (23%; P < 0,01). Os resultados desse e de muitos outros estudos sugerem que a modificação do padrão de sono pode levar a desajustes endócrinos que induzem o desenvolvimento da obesidade. Sugere-se, também, que quanto mais tempo acordado, além de promover a alteração hormonal capaz de aumentar a ingestão calórica, possibilita uma maior oportunidade para a ingestão alimentar. A perda de sono pode também resultar em cansaço, que por sua vez, tende a diminuir o nível de atividade física. Outro potencial mecanismo inclui efeitos na taxa de metabolismo basal.
Alterações endócrinas induzidas pela perda de sono e sua influência no controlo da ingestão alimentar
Estudos recentes têm observado que a redução do tempo total de sono está associada a dois comportamentos endócrinos paralelos capazes de alterar significativamente a ingestão alimentar: a diminuição da leptina e o aumento da grelina, resultando, assim, no aumento da fome e da ingestão alimentar.
A alteração dos níveis da leptina e grelina é considerado um importante mecanismo capaz de alterar o padrão da ingestão alimentar e levar a desajustes nutricionais. Para Kalra et al., o ritmo e a sincronização na secreção da leptina e grelina são importantes para o padrão diário das refeições. Estudos indicam que um padrão rítmico recíproco entre a leptina e a grelina estabelece o ritmo no sistema neuropeptídeo Y (NPY), que é o caminho final comum para a expressão do apetite no hipotálamo. Kalra et al., mostraram que a leptina inibe tanto a secreção de grelina quanto o estímulo de alimentação por esta, indicando que a leptina desempenha o papel de comunicação de realimentação entre a periferia e o hipotálamo para a homeostasia da massa corporal.
Efeito da perda de sono nas escolhas alimentares
Alguns estudos apontam que a privação de sono parece aumentar não só o apetite, como também a preferência por alimentos mais calóricos. Spiegel et al., mostraram que o apetite por doces, biscoitos salgados e tubérculos, aumentou de 33 para 45%, mas o apetite por frutas, vegetais e alimentos com alta quantidade de proteínas foi pouco afetado. Estryn-Behar et al,. e Lennernas et al., observaram uma grande preferência pelo consumo de snacks rápidos e calóricos durante o horário de trabalho nos trabalhadores noturnos. Essa preferência é bastante preocupante, pois além de os indivíduos com perda de sono apresentarem um padrão hormonal predisponente para uma ingestão calórica superior, essas calorias tendem a ser proveniente de alimentos com baixa qualidade nutricional.
Efeito da perda de sono no gasto energético do quotidiano
Embora algumas estudos sugiram que a restrição de sono pode aumentar o gasto energético em função de estar mais tempo acordado, outros têm especulado que a redução do tempo a dormir poderia diminuir o gasto energético diário total. Isto resultaria no aparecimento de fadiga e sonolência excessiva durante o dia, o que contribuiria para a redução da atividade física diária. Um estudo conduzido por Knutson mostrou que 40% de adolescentes dos 12 aos 16 anos referiam acordar cansados, o que, segundo Taheri, poderia ter consequências adversas no nível da atividade física diária. Contudo, é importante a existência de estudos que calculem o gasto energético em indivíduos submetidos à restrição de sono para que existam mais evidências científicas a cerca desta relação.
CONCLUSÕES
É quase senso comum observar que menos tempo de sono é um fator gigante para o aparecimento da obesidade. A diminuição do tempo de sono pode modificar o padrão endócrino que sinaliza a fome e saciedade por meio da diminuição dos níveis da leptina e aumento dos níveis da grelina, e até mesmo alterar as escolhas alimentares. A modificação do padrão de sono pode levar a desajustes endócrinos que induzem ao aparecimento da obesidade.
Por se tratar de uma área de estudo relativamente recente, há necessidade da realização de mais estudos que esclareçam a real influência do sono nos diversos fatores responsáveis pelo controlo da massa corporal.
Desta forma, um tempo de sono adequado é essencial para a manutenção do estado nutricional e deve ser estimulado tanto por profissionais da saúde, do exercício e por cada um de nós.
BIBLIOGRAFIA
Crispim, C., Zalcman, I., Dátilo, M., Padilha, H., Tufik, S., & Mello, M. (28 de 05 de 2007). Arquivos Brasileiros de Endocrinologia & Metabologia. Relação entre Sono e Obesidade: uma Revisão da Literatura, pp. 1041-1049.